Doutrina

TRABALHO VOLUNTÁRIO

FERNANDO JOSÉ LONGO FILHO
Procurador do Distrito Federal

Sumário: 1. Introdução. 2. Relevância atual do trabalho voluntário. 3. Elementos da relação empregatícia. 4. Elementos da relação de trabalho voluntário. 5. A questão da imprescindibilidade do termo de adesão. 6. Critério de aferição de fraude à lei trabalhista por meio de um contrato de trabalho voluntário. 7. Conclusões.

1. INTRODUÇÃO
O trabalho voluntário é uma forma laboral cada vez mais presente na sociedade contemporânea, sendo altamente estimulado por ser um instrumento capaz de restaurar os laços de solidariedade social, tão fragilizados hodiernamente, bem como por ser meio capaz de conferir realização pessoal.
Diante desse novo quadro social, o aumento das atividades voluntárias, o Direito reage aos fatos, regulando e normatizando a realidade. Ampliando-se o número de relações voluntárias, e diante da sua crescente valorização, em 1998, foi publicada a Lei 9.608, já alterada, em alguns aspectos, pela Lei 10.748, de 2003, e pela Lei 10.940, de 2004, que passou a regular o trabalho voluntário. Observa-se a relação dialética entre o Direito e a vida social no processo de normatização do trabalho voluntário.
O presente artigo tem como objetivos:
a) demonstrar a relevância do trabalho voluntário;
b) analisar os requisitos do trabalho voluntário elencados pelo diploma legal, realizando um estudo comparativo com os elementos que integram a relação de emprego;
c) definir se o termo de adesão é um elemento imprescindível para que a relação de trabalho voluntário se configure;
d) estabelecer critérios de aferição de fraude à lei trabalhista por meio de um contrato de trabalho voluntário.
No presente estudo, as expressões serviço voluntário e trabalho voluntário serão usadas indistintamente. Sendo a última, entretanto, de nossa preferência por ser uma denominação mais adequada, por traduzir com mais precisão a realidade, pois a relação voluntária é uma forma de trabalho, bem como por designar o trabalho voluntário como uma espécie do gênero laboral.

2. RELEVÂNCIA ATUAL DO TRABALHO VOLUNTÁRIO
Indivíduos colocando à disposição a sua energia pessoal gratuitamente a serviço da sociedade têm sido algo cada vez mais comum nos dias de hoje. A mídia estimula o trabalho voluntário, a sociedade apóia e respalda as iniciativas individuais e coletivas e empresas têm se conscientizado da sua função social. A revista Exame de 13 de janeiro de 1999 teve como reportagem de capa o exemplo de uma empresa que financia atividades filantrópicas e que incentiva os seus empregados a se envolverem em atividades de cunho social. De cerca de 7000 empregados da empresa no Brasil, quase 1000 estão envolvidos em um programa de voluntariado. Atualmente, a empresa tem que ser observada como parceira da sociedade.
Paralelamente à compreensão da função social das empresas, tem-se desenvolvido um conceito mais amplo de cidadania. Os indivíduos estão passando a compreender a cidadania como algo a ser construído, não como um dado. Ao lado disso, as pessoas estão incorporando a consciência da importância da contribuição individual no processo de construção da cidadania. Pode-se afirmar que a cidadania é um fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, II, da CF de 1988), como meta a ser alcançada (“construir uma sociedade livre, justa e solidária”, artigo 3º, I da CF de 1988).
O trabalho voluntário é uma forma de expressão da cidadania e um instrumento de construção da cidadania. Cidadania deve ser compreendida como um complexo de direitos e principalmente de deveres, pois, como afirma Calmon de Passos, “só enfatizando o dever colocamos o outro na esfera da nossa responsabilidade e mobilizamo-nos para a solidariedade”.1 Fazendo referência ao dever, o apóstolo Paulo afirmou: “A ninguém devais coisa alguma a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros: porque quem ama aos outros cumpriu a lei” (Rm. 13:8). E que deveres? Deveres de amar o próximo, de protestar, de exigir das autoridades públicas ações capazes de atender as demandas sociais, de participar ativamente do processo político decisório e de colaborar diretamente na solução das dores da população por meio do trabalho voluntário. O trabalho voluntário é um instrumento valioso na construção não de um Estado, mas de uma nação.

Em uma perspectiva sociológica, o trabalho voluntário é relevante por ser um meio eficiente de restauração dos laços sociais. Contemporaneamente, as relações sociais são marcadas por aspectos privatizantes e pela ausência de relacionamentos afetivos e pessoais. O trabalho voluntário contribui para a restauração do tecido social e para diminuir a distância entre cidadãos e “excluídos”. Em um prisma filosófico, o trabalho voluntário confere um senso de utilidade e dignidade da vida humana. Por todas essas razões apontadas, constata-se a grande relevância do trabalho voluntário.

3. ELEMENTOS DA RELAÇÃO EMPREGATÍCIA
Em uma perspectiva contratualista, o contrato de trabalho cria uma relação de emprego, que é constituída, como se apreende da análise dos artigos 2º e 3º da CLT, pelos seguintes elementos: subordinação, onerosidade, pessoalidade e não eventualidade.

3.1 SUBORDINAÇÃO
Ao surgir a relação de emprego, o trabalhador coloca a sua energia pessoal à disposição do empregador; cria-se, portanto, um vínculo subordinativo entre empregado e empregador. O artigo 3º da CLT utiliza a expressão dependência, porém a doutrina consagrou universalmente o termo subordinação. Mas que tipo de subordinação?
Existem várias teorias tentando explicar a natureza da subordinação na relação de emprego. O professor Rodrigues Pinto arrola as seguintes qualificações: econômica, técnica, social, moral e jurídica.2 Atualmente, a concepção jurídica quanto à natureza da subordinação é assente doutrinariamente. A subordinação decorre do contrato de trabalho, tratando-se de uma limitação da autonomia da vontade estabelecida contratualmente. A subordinação é um estado de sujeição ao qual o empregado anui por meio de um negócio jurídico, o contrato. A dependência ou subordinação, originando-se de um instrumento jurídico, o contrato, não poderá ter outra natureza a não ser jurídica.

A subordinação jurídica é uma situação de sujeição em que o empregado transfere poderes ao empregador, permitindo um comando das atividades desempenhadas pelo empregado. Que poderes são esses? São poderes gerenciais e disciplinares, isto é, poderes de conduzir a atividade produtiva do empregado, bem como de fiscalizar a sua atuação, imputando, nas hipóteses previstas em lei, as sanções cabíveis.

3.2. ONEROSIDADE
A onerosidade é elemento da relação de emprego relacionado com a percepção de salário por parte do empregado. O contrato de trabalho é bilateral, isto é, gera obrigações recíprocas para ambas as partes. O empregado coloca a sua energia à disposição do empregador e, por sua vez, o empregador está obrigado a remunerar o trabalhador.
Presentes os requisitos da relação empregatícia, se o empregador não realizar o pagamento salarial, haverá enriquecimento ilícito por sua parte. Em algumas situações é complexo constatar a existência de todos os elementos da relação de emprego.
Em outras hipóteses, o trabalho é prestado por convicções religiosas, o que exclui a relação de emprego, pois não há intenção de contratar. Observa-se que o animus contrahendi, a intenção de contratar, é um importante critério aferidor da existência da relação de emprego.

3.3. PESSOALIDADE
A atividade laboral pactuada mediante o contrato de trabalho somente pode ser desenvolvida por pessoa física, como dispõe a CLT no artigo 3º. A obrigação do empregado deve ser cumprida de modo pessoal, em outras palavras, a obrigação tem caráter intuito personae. O contrato de trabalho, celebrado entre as partes, vincula o empregado de modo pessoal, pois o empregador está interessado na atividade a ser desenvolvida pelo empregado contratado, sendo impossível a sua substituição por vontade unilateral do obreiro.
O empregador pode ser tanto pessoa física como jurídica. As instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos podem figurar como empregador em uma relação de emprego (artigo 2º, § 1º, da CLT).

3.4. NÃO EVENTUALIDADE
O trabalho subordinado pode ser eventual e contínuo. A não eventualidade ou continuidade é um elemento da relação de emprego que consiste na atividade realizada de modo periódico, constante e dirigida a um determinado destinatário. O trabalhador vincula-se a um empregador de forma contínua.
O trabalhador eventual não é empregado, não está resguardado pela legislação trabalhista. Segundo Amauri Mascaro Nascimento, “trabalhador eventual é aquele que presta a sua atividade para alguém, ocasionalmente”.3 O critério da não essencialidade da atividade prestada (caracterizado estaria o trabalho eventual quando a atividade realizada não fosse atividade-fim da empresa) é insuficiente, pois pode haver empregado exercendo atividade que não seja da essência da empresa-empregadora. O que caracteriza a eventualidade é a ocasionalidade.
Importante ressaltar serem imprescindíveis a existência dos quatro elementos para que a relação de emprego se configure. A ausência de qualquer um deles descaracteriza a relação de emprego. Cabe salientar a existência de outros elementos suplementares, como, por exemplo, a exclusividade e o animus contrahendi. Ambos são essenciais para que a relação de emprego se configure. O animus contrahendi, ou seja, a intenção de ser contratado como empregado, é um importante critério de aferição da relação de emprego, sendo que alguns o elevam a categoria de elemento essencial.

4. ELEMENTOS DA RELAÇÃO DE TRABALHO VOLUNTÁRIO
O diploma legal 9.608/98 relacionou alguns elementos que compõem a relação de trabalho voluntário. A regulação normativa desta espécie laboral dificultou a sua constituição e reconhecimento, pois ampliou o número de requisitos. Podem-se extrair da “Lei de Serviço Voluntário” e de uma interpretação teleológica da lei os seguintes elementos da relação jurídica voluntária: gratuidade, coordenação, atividade prestada por pessoa física à entidade que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social e atividade prestada à instituição pública de qualquer natureza ou a instituição privada sem fins lucrativos.

4.1. GRATUIDADE
A Lei 9.608/98 em seu artigo 1º, caput, prescreve: “Considera-se serviço voluntário para fins desta Lei, a atividade não remunerada...”. A atividade prestada a título de trabalho voluntário não gera a obrigação da contraprestação de caráter salarial ou remuneratório. Aquele que coloca a sua energia pessoal à disposição em uma relação voluntária não adquire vantagem patrimonial, beneficiando-se exclusivamente no aspecto existencial.

Explicitando a gratuidade do serviço voluntário, o parágrafo único do artigo 1º dispõe do seguinte modo: “O serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista, previdenciária ou afim”. Enquanto a relação de emprego é marcada pela onerosidade, a relação voluntária tem como traço característico a gratuidade, ao menos sob o ângulo do tomador do serviço. Vale dizer: tratando-se de prestador de serviço voluntário com idade de dezesseis a vinte e quatro anos e integrante de família com renda mensal per capita de até meio salário mínimo, a União é autorizada a conceder auxílio financeiro, nos termos do artigo 3º-A.

4.2. COORDENAÇÃO
Qual o tipo de vínculo jurídico entre a instituição e o trabalhador voluntário? O vínculo entre empregador e empregado é de subordinação. Será possível falar-se em subordinação na relação voluntária? Para responder a estas perguntas, torna-se imprescindível observar os fatos.
A relação voluntária é gratuita, deduz-se, desta forma, que quem realiza a atividade tem outra forma de sobrevivência, seja ela qual for. A instituição na relação voluntária conta com a disposição e motivação pessoal do voluntário. A subordinação jurídica, típica da relação de emprego, que consiste nos poderes gerenciais e disciplinares, inviabiliza a própria constituição de uma relação voluntária. Atitudes de controle e fiscalização são fatores desestimulantes para aqueles que buscam modos de manifestar sua solidariedade para com o próximo e um sentido existencial. O trabalho voluntário possui como essência, em um prisma psicofilosófico, a motivação pessoal e o sentimento de utilidade.
A relação existente entre a instituição e o voluntário é uma relação de diálogo, de composição, de coordenação de esforços almejando um objetivo comum: a satisfação de necessidades humanas. Constata-se, no plano fático, que a relação voluntária é permeada por uma atitude de coordenação: voluntário que se coloca à disposição, tendo limitações temporais, físicas, entre outras; e a instituição com possibilidades e limites financeiros. O vínculo jurídico entre instituição e voluntário é de coordenação, pois, se fosse de subordinação, inexistiria suporte fático para a Lei de serviço voluntário, tornar-se-ia uma norma sem eficácia jurídica.
Cabe ressaltar que o fato do vínculo ser de coordenação não significa a inexistência de ordens na condução das atividades prestadas de modo voluntário. Se assim fosse, grandes e complexas instituições que têm como mão-de-obra o trabalho voluntário estariam fadadas à morte institucional. O que distingue fundamentalmente o vínculo de coordenação do vínculo de subordinação é o grau de intensidade das ordens. Observa-se, na análise das múltiplas relações jurídicas, que não existe o vínculo de coordenação, o vínculo de subordinação, mas vínculos de coordenação, vínculos de subordinação. Cada relação jurídica é única, pois é marcada com traços de singularidade próprios da vida humana.

4.3. ATIVIDADE PRESTADA POR PESSOA FÍSICA À ENTIDADE QUE TENHA OBJETIVOS CÍVICOS, CULTURAIS, EDUCACIONAIS, CIENTÍFICOS, RECREATIVOS OU DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
A atividade necessariamente deve ser prestada por pessoa física, sob pena de não se configurar a relação. Apesar da redação tortuosa e ambígua do artigo 1º – o texto não é claro em relação a quem os objetivos são endereçados, se à entidade ou ao trabalhador voluntário –, entende-se que os objetivos são vinculados à entidade. As atividades prestadas pelo voluntário, em algumas hipóteses, não atingem os objetivos prescritos em lei, ao menos de modo imediato. Contudo, contribuem para que a entidade, em uma perspectiva macro, alcance as suas metas.
Cabe lembrar que entidade e o voluntário atuam em conjunto, por meio de um vínculo de coordenação, buscando alcançar objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social. O modo como o voluntário contribui não é relevante. O voluntário insere-se na entidade, participando e contribuindo de acordo com os seus recursos pessoais e possibilidades. Inferir que os objetivos expressos legalmente são atinentes à atividade prestada, e não à instituição, implica restrições indevidas ao trabalho voluntário, desvirtuando-se, assim, a finalidade do texto legal.

4.4. ATIVIDADE PRESTADA À INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE QUALQUER NATUREZA OU À INSTITUIÇÃO PRIVADA SEM FINS LUCRATIVOS
Está excluída qualquer possibilidade de uma instituição privada com fins lucrativos estabelecer uma relação de trabalho voluntário. A lei somente confere legitimidade para firmar uma relação voluntária às instituições públicas, seja qual for a natureza, e às instituições privadas sem fins lucrativos.
A exclusão das entidades privadas com fins lucrativos das relações voluntárias é benéfica, pois delimita com precisão o campo em que as relações de trabalho voluntário podem se processar. Restringem-se, portanto, as possibilidades de fraude à lei trabalhista.

5. A QUESTÃO DA IMPRESCINDIBILIDADE DO TERMO DE ADESÃO
O artigo 2º da Lei 9.608/98 prevê a celebração de um termo de adesão para a constituição da relação de serviço voluntário. Segundo Eduardo Gabriel Saad,4 o termo de adesão é da substância do ato, tratando-se de solenidade essencial, sem a qual o ato não se perfaz. Reitera esta posição José Affonso Dallegrave Neto,5 afirmando que o termo de adesão é uma formalidade prescrita em lei, que deve ser observada, sob pena de nulidade, conforme o artigo 145, III, do antigo Código Civil, atual artigo 166, IV, do novo CC. Dallegrave salienta, contudo, que a nulidade do ato, por ausência de termo de adesão, não é suficiente para a conversão em uma relação de emprego, pois se deve avaliar a presença dos elementos da relação de emprego, verificar a intenção de contratar e se a parte agiu de boa-fé.

A questão a ser abordada é se o termo de adesão constitui um elemento imprescindível para que a relação voluntária se constitua. No plano prático-finalístico, considerar o termo de adesão como requisito essencial é inútil, pois, como afirma Dallegrave, a ausência do termo de adesão não converte de imediato a relação voluntária em relação empregatícia. Entretanto, cabe indagar quais seriam os fundamentos jurídicos que sustentariam a perspectiva do termo de adesão como um requisito prescrito em lei, porém dispensável. Podem-se arrolar a favor da prescindibilidade do termo de adesão em uma relação voluntária os seguintes argumentos: a função social dos contratos, o interesse público e o princípio da boa-fé/confiança.
Contemporaneamente, a teoria geral dos contratos incorporou a noção de função social como elemento hermenêutico. O contrato de serviço voluntário é um instituto de alta relevância social. Será que considerar nula uma relação voluntária que preenche todos os requisitos, menos o de forma, é uma interpretação adequada de sua função social? Obviamente que não.
O interesse público é um argumento a favor da dispensabilidade do termo de adesão. O interesse público não é um conceito estranho ao direito privado. Juarez de Freitas, citando Georg Jellinek, traduz e transcreve o seguinte trecho: “Todo Direito Privado está unido intimamente a uma exigência de Direito Público, descansando sobre os alicerces deste”.6 O direito público de privado não se diferenciam a partir de um aspecto ontológico, mas em função do grau e intensidade dos valores e princípios publicistas presentes em ambos os ramos. O direito privado possui alicerces públicos, os seus institutos buscam em maior ou menor grau, seja de modo imediato ou mediato, a satisfação de um interesse público.

Entendendo-se o trabalho voluntário a partir da sua finalidade, que é a satisfação de um interesse público, apesar de ser um instituto de direito privado, pode-se afirmar que é incompatível com o interesse público estabelecer requisitos que produzam maior complexidade da relação voluntária e até mesmo inviabilizem o trabalho voluntário. Considerar o termo de adesão um requisito indispensável é atentar contra o interesse público, pois existe a possibilidade de relações voluntárias serem nulificadas pela simples ausência de um aspecto formal.
O princípio da boa-fé respalda a dispensabilidade do termo de adesão. O princípio da boa-fé/confiança resguarda o valor segurança jurídica, mediante a proteção da confiança depositada pela parte em uma relação jurídica. A relação voluntária, quando formada, gera expectativas tanto para a entidade quanto para o público que é beneficiado pelo serviço. Ter como imprescindível o termo de adesão e, por conseqüência, cominar de nulidade a relação voluntária pela ausência do termo significa ferir a confiança depositada pela entidade pública ou filantrópica e pelo público beneficiado na relação jurídica, e até mesmo no ordenamento jurídico como um todo.
Alguns certamente questionarão acerca da agressão ao que está disposto no artigo 166, IV, do novo CC, que prescreve ser nulo o ato quando não se revestir da forma prescrita em lei. A letra fria da lei não pode ser um empecilho à realização de objetivos legítimos e lícitos: a função social dos contratos e o interesse público. O princípio da boa-fé/confiança, consagrado no novo Código Civil, tem papel muito importante no abrandamento da lei e na particularização da aplicação do Direito (Direito e lei não são uma identidade – o Direito não se esgota na lei, é mais abrangente do que ela). Clóvis do Couto e Silva, comentando de modo magistral o princípio da boa-fé, afirma: “O princípio da boa-fé endereça-se sobretudo ao juiz e o instiga a formar instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da relação obrigacional, ou mesmo negativo em face do direito postulado pela outra parte. A principal função é a individualizadora, em que o juiz exerce atividade similar à do pretor romano, criando o “Direito do caso”. O aspecto capital para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir um valor autônomo, não relacionado com a vontade”.7
O princípio da boa-fé funciona como um contrapeso ao princípio da legalidade, devendo haver a valoração de situações concretas em que for impossível a compatibilidade absoluta entre ambos, tendo-se como critério básico o peso e a importância da aplicação do princípio ao caso concreto, objetivando-se a harmonização, a concordância prática entre os princípios. O princípio da boa-fé não pode ser compreendido através da vontade, de aspectos subjetivos. O princípio da boa-fé possui valor autônomo e objetivo – princípio da boa-fé objetiva –, devendo ser entendido como uma relação de confiança, como padrões de conduta socialmente desejáveis.
Por fim, ainda em favor do princípio da boa-fé/confiança, cabe a lembrança de que este princípio tem sido o fundamento da convalidação de determinados atos administrativos praticados há longo lapso temporal.8 O princípio da boa-fé tem conquistado terreno até mesmo na seara onde reina o princípio da legalidade. Como se observa, a letra da lei não é obstáculo para a concretização dos valores e princípios jurídicos.

6. CRITÉRIO DE AFERIÇÃO DE FRAUDE À LEI TRABALHISTA POR MEIO DE UM CONTRATO DE TRABALHO VOLUNTÁRIO
A fraude à lei trabalhista é uma violação ao espírito da legislação laboral, ao telos das normas de Direito do Trabalho. Pontes de Miranda tece os seguintes comentários acerca da fraude à lei: “a violação da lei cogente ainda pode ter importância nulificante quando se trate de fraude à lei, que se dá pelo uso de outra categoria jurídica, ou de outro disfarce, e se tenta alcançar o mesmo resultado jurídico que seria excluído pela regra jurídica cogente proibitiva”.9 Fraude à lei é a utilização de uma norma com o escopo de violar o que está prescrito de modo cogente em outro estatuto normativo.
A celebração de um contrato de serviço voluntário pode ser um artifício para fraudar à lei trabalhista. O contrato de serviço voluntário pode ser um meio para ocultar uma relação de emprego. Nesta hipótese, configurados os elementos da relação de emprego, o contrato de trabalho voluntário é nulo, sendo convertido em contrato de trabalho.
Entretanto, nem sempre é fácil verificar a existência de fraude, pois, em alguns casos, é extremamente complexo definir no plano fático qual a relação jurídica – se é de emprego ou de trabalho voluntário. Torna-se imprescindível o uso de alguns critérios que empregados conjuntamente permitem definir a relação jurídica existente e, por conseqüência, se há fraude à lei trabalhista. O princípio da primazia da realidade é um critério base. Analisando-se o caso em concreto, à luz do princípio da primazia da realidade – primazia dos fatos sobre os aspectos formais – pode-se aferir a existência ou não de uma relação de emprego.
Outro critério relevante é o animus contrahendi, devendo ser compreendido como a intenção de contratar que se manifesta objetivamente por atitudes, sendo apreensível a partir das circunstâncias. A intenção de contratar é subjetiva, porém se objetiva por atitudes que devem ser interpretadas de acordo com a situação. A partir da hermenêutica do caso concreto, é possível desvelar a intenção de contratar as partes: se almejavam uma relação de emprego ou de trabalho voluntário.
O princípio da boa-fé/confiança é outro critério abalizador da fraude à lei trabalhista. O princípio da boa-fé visa resguardar o valor de segurança jurídica, mediante a proteção da confiança depositada pela parte em uma relação jurídica. O princípio da boa-fé/confiança tem como escopo proteger legítimas expectativas das partes contratantes. Cabe ao operador jurídico analisar o caso concreto através do prisma do princípio da boa-fé, tendo como finalidade salvaguardar a legítima expectativa da parte contratante. Por exemplo, as partes contratantes que, em um contexto objetivo de boa-fé, estabelecem um vínculo de trabalho voluntário, não podem ter as suas expectativas frustradas por uma possível configuração de relação de emprego. Reconhecer, nesta hipótese, uma relação empregatícia significa atingir os direitos protegidos pelo princípio da boa-fé de qualquer um dos contratantes, ou de ambas as partes.
Por último, cabe salientar que nenhum dos critérios deve ser utilizado isoladamente e unilateralmente. O operador jurídico deve valer-se de todos os critérios, aplicando-os de modo conjugado ao caso concreto, a fim de aferir a existência de fraude à lei trabalhista por meio de um contrato de trabalho voluntário.

7. CONCLUSÕES
Diante do exposto, conclui-se:
a) o trabalho voluntário é altamente relevante para a sociedade atual, pois é um aspecto integrante da cidadania e um mecanismo de restauração dos laços de solidariedade;
b) a relação jurídica de trabalho voluntário é constituída pelos elementos de coordenação, gratuidade, atividade prestada por pessoa física à entidade que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, recreativos ou de assistência social e atividade prestada à instituição pública de qualquer natureza ou à instituição privada sem fins lucrativos;
c) o termo de adesão, apesar de ser um requisito prescrito em lei, não é imprescindível para que a relação de trabalho voluntário se configure, fundamentando-se esta posição na função social dos contratos, no interesse público e no princípio da boa-fé/confiança;
d) o princípio da primazia da realidade, o animus contrahendi e o princípio da boa-fé/confiança aplicados conjugadamente ao caso concreto são importantes critérios para se aferir a fraude à lei trabalhista mediante um contrato de trabalho voluntário.
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1. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo: julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 102.
2. PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de direito individual do trabalho: noções fundamentais de direito do trabalho, sujeitos e institutos do direito individual. 3. ed. – São Paulo: Ltr, 1997, pp. 115/120.
3. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 13. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 314.
4. SAAD, Eduardo Gabriel. Temas Trabalhistas. LTr – Suplemento Trabalhista 42/98.
5. DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Contrato individual de trabalho: uma visão estrutural. São Paulo: Ltr, 1998.
6. FREITAS, Juarez. Estudos de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997. 2ª Edição. p. 12.
7. SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O Direito Privado na visão de Clóvis do Couto e Silva; org. Vera Maria de Jacob Fradera – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 42.
8. Conferir Repensando a natureza da relação jurídico-administrativa e os limites principiológicos à anulação dos atos administrativos. In Freitas, Juarez. Estudos de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997. 2. ed. pp. 11-32
9. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado, vol. 4 p. 200, apud DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Contrato individual de trabalho: uma visão estrutural. São Paulo: Ltr, 1998, p. 97.